Os EUA poderiam realmente retomar o Canal do Panamá? É complicado.

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O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, causou ondas de choque em toda a América Latina no início deste mês, quando usou seu discurso de posse para advertir o Panamá com uma ameaça muito explícita de retomar o canal mais famoso do mundo. A retórica não esmoreceu desde então, o que faz com que muitos se perguntem se o governo poderia realmente seguir com a anexação da importante hidrovia. É um quebra-cabeça geopolítico complexo na convergência da história, comércio, rivalidades entre superpotências, migração e dois países tradicionalmente aliados.

“Fomos muito maltratados… o espírito do nosso tratado foi totalmente violado”, alegou Trump no discurso de janeiro, referindo-se à entrega do Canal do Panamá em 1999, construído pelos EUA no início do século 20 a um custo de US $ 15 bilhões em dólares de hoje. “Estamos pegando de volta.”

O canal movimenta cerca de US$ 270 bilhões em carga anualmente, e  os consumidores americanos respondem por quase 75% das mercadorias que fluem por ele. Embora a China seja o segundo maior usuário, muitos outros países da América Latina – incluindo Chile, México, Peru, Equador, Colômbia e Guatemala – também dependem do canal para movimentar suas mercadorias.

No centro das alegações de Trump está a crença de que a China vem ganhando muita influência na zona ao redor do Canal, o que poderia minar os interesses dos EUA, incluindo seu acesso garantido à rota marítima crucial que conecta os oceanos Atlântico e Pacífico.

As alegações

Em 2017, o Panamá cortou laços diplomáticos com Taiwan em um movimento que foi amplamente visto como uma abertura para Pequim, e as preocupações com a expansão da influência da China sobre o Canal do Panamá persistiram desde então. Tem sido parte de uma ascensão mais ampla do país asiático na região – junto com sua iniciativa multibilionária de infraestrutura “Belt and Road” (Cinturão e Rota) que abrange o mundo – e mostra como a China utiliza incentivos comerciais para expandir sua influência. De acordo com o Global Taiwan Institute, por exemplo, o país assinou ou iniciou negociações para acordos comerciais com Panamá, Nicarágua, El Salvador e Honduras depois que eles abandonaram o reconhecimento diplomático de Taiwan para Pequim.

A general Laura Richardson, ex-comandante do Comando Sul dos Estados Unidos, testemunhou perante o Comitê de Serviços Armados da Câmara em 2023 que a China estava fazendo investimentos significativos na América Latina para fortalecer sua influência militar e política; ela chamou o Canal do Panamá – que vê 6% do comércio global passar por ele a cada ano em meio aos seus 14.000 trânsitos – de “ponto de estrangulamento estratégico global”.

“Em qualquer conflito global em potencial, a Autoridade do Canal do Panamá (ACP) poderia utilizar portos regionais estratégicos para restringir o acesso de navios navais e comerciais dos EUA”, disse Richardson. “Este é um risco estratégico que não podemos aceitar ou ignorar.” O Centro de Estudos Estratégicos Internacionais observou a crescente presença na área em 2021, quando detalhou bilhões de dólares em investimentos chineses que incluem os portos de Balboa e Cristobal operados pela CK Hutchison Holdings, com sede em Hong Kong.

“O Canal do Panamá é, sem dúvida, uma importante porta de entrada para uma tentativa da China de ter uma presença mais ampla e um centro logístico para a entrada de mercadorias chinesas na região”, escreveram os especialistas, alertando especificamente que a Hutchison poderia ser “vulnerável à influência de outras empresas sediadas na China nos próximos anos”. Eles ainda ressaltaram que uma decisão pendente na época que acabou renovando um contrato de 25 anos para um dos portos moldaria as considerações geopolíticas nos próximos anos e seria um ponto de tensão. 

Trump, em um post na terça-feira  em sua conta Truth Social, renovou suas críticas ao envolvimento com a China e acusou o país da América Central de tentar encobri-lo removendo cartazes escritos em chinês. “O Panamá não vai sair impune dessa”, escreveu ele.

O Panamá responde

O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, que se descreve como um  político de centro-direita, está no comando de quem geralmente tem sido um forte aliado americano na região. Entretanto, ele rapidamente defendeu a soberania do país e disse que “cada metro quadrado do Canal do Panamá e sua área adjacente pertencem ao Panamá e continuarão a pertencer”. Depois de reclamar com as Nações Unidas, ele chegou até a levar sua postura defensiva ao Vaticano esta semana, onde se encontrou com o Papa Francisco.

As autoridades panamenhas deram continuidade lançando  uma auditoria da Hutchison, o que realmente sugere que eles estão se movendo cuidadosamente para resolver algumas das preocupações dos EUA. Orlando Pérez – professor da University of North Texas em Dallas que escreveu extensivamente sobre política no Panamá – disse que provavelmente há muito espaço para negociação e propositura de acordos, especialmente porque o país tem uma cultura política conhecida por ser transacional.

“Os panamenhos são naturalmente inclinados a buscar acordos”, escreveu ele. “O controle do Canal, no entanto, é essencial para a identidade nacional. Forçar esse ponto é uma receita para alimentar o nacionalismo e minar as relações com um parceiro que está inclinado a ser pró-EUA e chegar a acordos. Dito isso, ainda é o Panamá que provavelmente terá que agir com muito mais cuidado ao enfrentar a ira de Trump em seu púlpito de autoridade e as prioridades descaradas de “América Primeiro” que aparentemente abraçaram  o expansionismo e uma forma revivida do “Manifest Destiny” (Destino Manifesto).

O Panamá pode ter alguma influência quando se trata de migração ilegal, que o governo Trump tornou uma peça central de sua política externa emergente. O país controla grande parte da remota ponte terrestre Darién Gap, que liga a América Central e a América do Sul por meio de uma floresta tropical traiçoeira e montanhosa, e um recorde de  520.000 migrantes – muitos da Venezuela – a atravessaram em 2023 para seguir para o norte a pé. Qualquer pessoa que faça a viagem tem que passar pelo Panamá, e os EUA precisarão de sua cooperação para deter o fluxo de pessoas. 

As letras miúdas

Embora o presidente Trump tenha atraído uma atenção significativa com sua retórica, se seu governo poderia ou não encontrar justificativa legal para apoiar o que muitos supõem ser apenas táticas de negociação é, bem, complicado. No centro da transferência que deu o controle do canal ao Panamá estão dois tratados que foram assinados em 1977; está no chamado “Tratado de neutralidade” onde Trump poderá mais facilmente encontrar uma fundamentação jurídica para uma possível intervenção dos EUA. Lá, em um Declaração conjunta de Entendimento que foi assinado pelo ex-presidente Jimmy Carter e pelo ex-presidente panamenho Omar Torrijos Herrera, está estabelecido que qualquer um dos países possui o direito de se defender contra quaisquer ameaças percebidas à sua neutralidade.

Cada um dos dois países deverá, de acordo com seus respectivos processos constitucionais, defender o Canal contra qualquer ameaça ao regime de neutralidade e, consequentemente, terá o direito de agir contra qualquer agressão ou ameaça dirigida contra o Canal ou contra o trânsito pacífico de navios através do Canal.

Não é carta branca, no entanto, e um esclarecimento importante complementa imediatamente:

Isso não significa, nem deve ser interpretado como, um direito de intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos do Panamá. Qualquer ação dos Estados Unidos será direcionada para garantir que o Canal permaneça aberto, seguro e acessível, e nunca será direcionada contra a integridade territorial ou a independência política do Panamá.

Isso pode parecer dar ao Panamá alguma cobertura, mas há mais, e talvez a maior justificativa política para uma possível intervenção militar seja um parágrafo que foi adicionado a uma carta de proclamação assinada pelo presidente Carter em 24 de setembro de 1979.

O acordo “para manter o regime de neutralidade estabelecido neste Tratado” no Artigo IV do Tratado significa que qualquer uma das duas Partes do Tratado pode, de acordo com seus processos constitucionais, tomar medidas unilaterais para defender o Canal do Panamá contra qualquer ameaça, conforme determinado pela Parte que tomar tal medida.

Essa é uma linguagem ampla, e não é difícil imaginar como Trump poderia usá-la insistentemente para conseguir o que quer. No final das contas, o Tratado é provavelmente mais ambíguo do que o Panamá gostaria de admitir, embora os EUA estejam explicitamente proibidos de adotar medidas que possam ameaçar a independência política do país. Pode haver espaço de manobra suficiente para apoiar as ameaças mais contundentes, e o fato de o Panamá não ter poder militar comparável também não ajuda em seu caso. Não é uma relação simétrica, para dizer o mínimo. A economia do Panamá também é dolarizada, o que a torna especialmente vulnerável a qualquer tipo de medida econômica que Trump e seu governo possam implantar.

Lições (a ser) aprendidas

Em meio à especulação e intriga, um recente confronto com o presidente colombiano Gustavo Petro – que no início deste mês reverteu o curso dos voos de deportação poucas horas depois de Trump ameaçar tarifas – contém uma lição importante: o novo governo Trump não tem medo de ir com força total para conseguir o que quer, e quando chegar a hora, o Panamá, como o México,  não terá muita escolha real se for forçado a decidir entre os EUA ou a China. Muitos países latino-americanos podem ter visto os laços com a China como uma forma de se proteger contra o risco econômico e político relacionado à dependência excessiva dos EUA, mas, ao fazê-lo, podem ter cutucado o ninho de vespas americano. A verdadeira questão agora é se o governo Trump realmente quer o retorno do controle físico total do Canal ou apenas um acordo que reduza a influência chinesa.

Há uma lição mais ampla para os EUA em tudo isso também. Se a superpotência tivesse investido mais na região antes, a China nunca teria tido espaço para aumentar sua presença em primeiro lugar. Há um reconhecimento tácito sobre isso em um projeto de lei recente no Senado que pede um investimento significativo no Panamá para modernizar a infraestrutura do canal e fornecer alternativas aos projetos financiados pela China, mas provavelmente nunca deveria ter chegado a esse ponto contencioso em primeiro lugar.

No final das contas, os EUA podem obter melhores resultados incentivando com recompensas do que por ameaças, mas isso requer um pensamento de longo prazo que freqüentemente parece faltar no ciclo político de prazo mais curto.